A gravação da audiência do caso do empresário André de Camargo Aranha, em que o advogado de defesa usou fotos da vítima Mariana Ferrer para comentar sobre o comportamento e as roupas dela causou comoção pública. Mariana aparece chorando após a fala do advogado e implora ao juiz por respeito.
A repercussão do caso, cujo vídeo foi divulgado no início de novembro, fez com que violência institucional virasse projeto de lei, já aprovado pela Câmara, para impedir que pessoas na condição de vítima sofram novas violências após a denúncia.
Também na Câmara, outro projeto busca garantir os direitos de vítimas de qualquer tipo de crime e também de “desastres naturais e epidemias, independentemente da sua nacionalidade e vulnerabilidade individual ou social”. O texto foi desenvolvido por um grupo de promotores de justiça, professores, psicólogos, profissionais de saúde e autoridades policiais e apresentado em julho deste ano como projeto de lei 3890/2020, por mais de 20 deputados. Agora, aguarda análise nas comissões da Câmara.
De que forma, caso seja aprovado, o projeto pode contribuir para as garantias e os direitos de vítimas, como de mulheres que sofrem violências, neste momento em que casos de repercussão trazem à tona a importância de preservá-las?
Estatuto da Vítima: o que prevê
Desmerecer a palavra da vítima, discriminá-la ou julgá-la não deveriam ser práticas comuns na sociedade civil. E muito menos pressioná-la ou constrangê-la durante seu depoimento no sistema judiciário ou pelas autoridades policiais quando ela vai relatar o caso.
Contudo, especialistas identificam que há um mecanismo de tentar se justificar a violência que a pessoa sofreu com base em comportamentos e perfil da própria vítima, principalmente em casos de violência sexual, com argumentos, perguntas ou ações para culpabilizá-la. A estratégia faz parte de uma cultura machista em que, quando mulheres são vítimas de crimes como feminicídio, ou de abusos e assédios sexuais, elas têm seu comportamento questionado. A falta de confiança no processo, aliás, faz com que parte das mulheres não denuncie o que sofreu.
O projeto prevê ainda direito a indenização por danos materiais, morais e psicológicos causados por parte do agente, treinamento de agentes públicos, a criação de um fundo para financiar apoio a vítimas, entre outros pontos (leia mais no fim deste texto).
Depoimento sem dano: o que muda
A promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, que atua à frente do projeto Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos (Avarc) do Ministério Público de São Paulo, é uma das responsáveis pelo estatuto. Ela explica que um dos direitos previstos no projeto é o de “depoimento sem dano” para vítimas de crimes sexuais.
“Neste modelo, ficariam em uma sala o juiz, o promotor e o advogado do ofensor. Em outra sala, a vítima com um psicólogo. As perguntas seriam conduzidas pelo psicólogo, sem a possibilidade de perguntas diretas, que são em si revimitizadoras e fazem com que ela vivencie o trauma sofrido de forma muito mais impactante e violadora a sua dignidade”, diz a promotora.
O formato foi colocado em prática, de forma inédita, por um juiz da cidade de Cavalcante (GO), no início de novembro. O estatuto seria um dispositivo legal, com abrangência nacional, de respaldo à vítima.
Escuta especializada: como fazer
O artigo 5 do estatuto determina que “as vítimas vulneráveis, tais como as vítimas de tráfico de pessoas, terrorismo, delitos que atentem contra a dignidade e liberdade sexual, raça, violência contra mulheres, pessoas com deficiência, idosos ou outros coletivos vulneráveis, têm direito a escuta especializada”, feita pela polícia ou Ministério Público.
Segundo a promotora, a proposta é que sejam dados cursos de capacitação com temáticas relacionadas às vítimas mais frequentes, para que haja um “trato mais profissional e sistemático” por parte dos profissionais que fizerem o atendimento. Isso inclui também funcionários da saúde pública, já que pode ser o primeiro contato institucional de uma vítima de violência. “Por isso, é importante que os dois lados tenham essa escuta especializada”, diz a promotora.
Tanto a escuta especializada quanto o depoimento especial já estão previstos pela Lei Maria da Penha, apesar da baixa aplicação. O estatuto propõe que as modalidades sejam ampliadas para vítimas de outros crimes, inclusive os relacionados à mulher.
Práticas restaurativas: como dar apoio
O texto também sugere a possibilidade de se criarem círculos restaurativos. “As vítimas de estupro, por exemplo, seriam conduzidas por um facilitador para que elas possam ressignificar aquela experiência que elas tiveram, que muitas vezes, em um ambiente sem condução, pode acabar se retraumatizando”, diz a promotora.
No caso de violência contra mulher, estão previstas também as conferências restaurativas, semelhantes ao depoimento especial. “A vítima fica em uma sala com uma pessoa da sua confiança, separada, sem contato com agressor, e assiste por vídeo o agressor assumindo a responsabilidade do que fez. Elas já estão sendo desenvolvidas com êxito no Reino Unido e na Bélgica.”
Se o acusado não estiver respondendo por crime com violência ou grave ameaça, diz a promotora, as sessões de justiça restaurativa podem fazer com que o Ministério Público renuncie a ação penal, ao focar na ressocialização dele.
Porque nós não podemos ter uma sociedade em que as pessoas não assumam as responsabilidades pelos atos. Isso gera mais violência, impede a ressocialização do agressor e traumatiza mais a vítima.
Contra estereótipo de gênero, atenção à revitimização
O Estatuto prevê ainda mecanismos para evitar a revitimização da mulher. “Existe um trato sistemático em que é colocada a questão da honra da mulher, baseado nesses estereótipos de gênero. Os advogados o utilizam. E o promotor e o juiz ficam em uma sinuca de bico, porque se proíbem de perguntar, alega-se nulidade e cerceamento do direito de defesa; se ele deixa a vítima retraumatizada, aí nem importa qual vai ser a decisão, porque ela sofreu uma violência institucional”.
O documento pretende corrigir essa lógica ao dar ferramentas para que os operadores do direito garantam a segurança psíquica, emocional e física da vítima.
Como a vítima é tratada hoje
Para a psicóloga clínica e hospitalar Maria Luiza Bullentini Facury, que atua voluntariamente no acolhimento de vítimas no Avarc, o tratamento dado às vítimas tende a colocá-las em um processo de revitimização. “A mulher, e todas as pessoas que sofrem algum tipo de violência, fica muito fragilizada. Há um senso comum de que, em casos de violência doméstica, abuso sexual, as suas questões não são devidamente valorizadas”, explica.
Isso contribui para que ela tenha um sentimento de impotência e acaba se calando para não enfrentar uma violência de um outro tipo: a do descaso.
Segundo a psicóloga, o Estatuto é um mecanismo para que seja sugerida capacitação das pessoas envolvidas, ou seja, profissionais da segurança pública, da Justiça e até de saúde, quando a vítima chega primeiro ao hospital depois de um crime. A ideia é que o tratamento seja mais empático e sensível. “Muitas vezes o profissional que atende essas vítimas não faz por descaso ou por maldade, mas por falta de treinamento. Então, o estatuto vai possibilitar uma capacitação para empatia.”
Direito da vítima: por que falar disso agora?
Celeste Leite dos Santos entende que há uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro para garantir os direitos das vítimas. “Nós temos o Direito Penal e a criminologia desenvolvida sobre a relação do Estado com o ofensor. A vítima foi retirada dessa equação. Ela foi instrumentalizada, e tirada da sua condição de pessoa com dignidade humana”, afirma. “Recentemente, o Código de Processo Penal teve um incremento, porém não reconheceu de forma expressa seus direitos, apenas os processuais, de saber se a pessoa foi presa ou solta.”
A promotora diz que a discussão sobre um dispositivo legal que defina os direitos das vítimas ainda é incipiente no Brasil, considerando que já há estatutos com esse poder em países como Portugal, Espanha, México e na França.
“Ela está prevista desde 1985, pela Declaração de Princípios Básicos de Vítimas de Crime e de Abuso de Poder. Os outros países já estão em outra etapa até, de incluir a vítima não só no âmbito processual. Da mesma forma que só punir uma pessoa não vai fazer com que ela não reincida na prática de um crime, apenas ter um processo penal em que a vítima não é escutada e seus sentimentos e suas emoções são ignorados, não adianta.”
Ela defende que ao mesmo tempo que o agressor não pode ficar estigmatizado, a vítima também não. E é esse um dos preceitos do estatuto. “Ela também precisa de uma satisfação do Estado, de uma resposta que seja eficiente.”
Principais pontos do projeto
- Sugere a criação de um Fundo Nacional de Custeio dos Serviços de Apoio e Projetos dos Ministérios Públicos Estaduais para a restauração das vítimas de crimes sexuais, dependentes de vítimas de crimes violentos e calamidades públicas, por meio do repasse de até 0,5% das receitas de tributos dos respectivos estados e até 0,1% das receitas com obtidas pela União com tributos federais”. Também será estimulada a doação de entidades privadas;
- Garante o direito da vítima de obter indenização relativa a danos materiais, morais e psicológicos causados por parte do agente do crime se ele for condenado; por ocasião da prolação de sentença condenatória;
- Assegura à vítima o direito de ser ouvida por videoconferência ou teleconferência como estratégia preventiva à revitimização;
- Garante o direito da vítima a não repetir o depoimento sobre o caso, se ele estiver devidamente registrado em mídia oral, “salvo pedido expresso e fundamentado”, diz o estatuto.
- Em crimes contra a dignidade e liberdade sexual, de preconceito de raça ou de cor, a formulação de perguntas de caráter ofensivo e vexatório para a vítima é proibida.